quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Rotina

Foto: retirada da internet.
   Acordei cedo. Antes mesmo do celular despertar, o sol já tocava o meu rosto. Tentei dormir mais um pouco. Fechei os olhos, rolei de um lado para o outro, e nada.    Depois dessa batalha perdida, criei forças para levantar e fui para o banheiro. Lá, o espelho me mostrou o que eu me recusava a ver: olhos inchados e as marcas do tempo.

    Não sou mais uma menina, tenho que aceitar isso. Pensei em comprar cremes de idade ou algo que pudesse disfarçar as cicatrizes que vieram junto com os anos. São tantas, que eu já até perdi as contas. Preciso também de um anestésico para a alma. Se bem que, às vezes, eu acho que o tempo é o próprio anestésico. Na medida que ele passa, as dores ficam menores. Mesmo quando as marcas são profundas.
   
   A gente acaba se adaptando, se conformando, aceitando. Em meio a esses pensamentos, liguei o chuveiro. Enquanto a água fria tocava o meu corpo, tentava roteirizar o dia que tinha acabado de começar. Todo dia é assim. Gosto de ter a falsa sensação de ter controle sobre aquilo que não depende só de mim.

     Coloquei uma roupa, preparei uma xícara de café, liguei a TV... Dez minutos no noticiário e o saldo não era nada bom: morte, roubo, corrupção, desastre ecológico, terrorismo, feminicídio, vingança... A mãe que chora a morte do filho. A mulher que foi vítima de um "amor" doentio. O senhor que viu a neta ir embora nas águas, agora barrentas, do Rio Doce. A esperança que morre a cada notícia e a dor, com nome, sobrenome e endereço, que se transforma em números que não param de crescer.

     Um gole do café, os olhos vidrados na TV e uma amargura que ultrapassa os limites da xícara. Será que esse mundo ainda tem jeito? Falta amor, falta respeito, falta esperança, falta caráter. Sobra ganância, sobra egoísmo, sobra ódio...  E, assim, fui imaginando essa vida como uma equação de resultado negativo e nada satisfatório.

    Desliguei a TV e fui para o trabalho com a minha companhia diária: o medo. O medo de ser assaltada, de ser atropelada, de achar alguma bala perdida, de ser violentada. São tantos medos, que nem sei. Mesmo com os olhos arregalados, o ritmo apressado e a respiração ofegante, chego ao fim da minha caminhada.

   Dou bom dia para o porteiro, pego os jornais e vou para a redação. Lá, eu fico sabendo da pauta. A partir desse momento, começo a duvidar que seja, realmente, um bom dia. Fazer Jornalismo é contar histórias. Histórias que, muitas vezes, a gente não queria que existissem, mas que precisam ser mostradas.

    Na edição, eu monto as histórias e vejo muita coisa que eu não queria ver. Vejo as lágrimas de mães que enterraram, além dos filhos, a vontade de viver. Vejo o pai que estuprava as próprias filhas. Vejo o padrasto que matou, covardemente, o enteado de apenas dois meses. Vejo o namorado ciumento que, além de matar a companheira, tirou a própria vida. Vejo o olhar frio e a tranquilidade, do jovem que, aos 16 anos, foi apreendido dezessete vezes. Vejo a revolta do comerciante que foi assaltado pela quarta vez, no mesmo mês.

  Cenas que, infelizmente, não pertencem a nenhum filme. Fazem parte do terror da vida real. Mas em meio a tantas notícias ruins, há alguns sopros de esperança: o catador de reciclados que, mesmo sem ter estudo, se dedica a encontrar e compartilhar a cultura que vem dos lixos. A mobilização de pessoas que, diante da maldade alheia, multiplicam o bem e cuidam do cãozinho que foi vítima da tolice humana e se recupera dos ferimentos causados pelo piche lançado no seu corpo. 

   Em meio a tantos pensamentos, me rendo às analogias. Às vezes, a vida parece uma queda de braço entre o bem e o mal. O bem se mostra um rapazinho franzino, de estatura média e olhos esbugalhados. Já o mal, grande, forte, movido a whey protein. E nós ficamos, na plateia, esperando que o bem vença pela experiência. Enquanto tantos outros espectadores gritam palavras de ódio. Esperamos que esse  rapazinho pegue o brutamontes pelo braço e o tire para dançar. Que mostre para ele, que existem prazeres na vida e que a violência não os levará a lugar nenhum.

  Depois de editar, revisar e enviar a matéria pronta, desligo o computador. Chega ao fim mais um dia de trabalho. É hora de voltar para casa. Abro a porta, jogo as chaves no sofá, ligo a TV, dou uma zapeada pelos canais. Tomo um banho e vou me deitar. Faço minha oração e, em silêncio, desejo que amanhã tenha boas histórias para contar.